O teste de curvatura geodésica nas águas é válido?

Objetivo do teste

Verificação da horizontalidade da represa de Três Marias/MG. alegando-se que a “altura” do lago é a mesma entre dois pontos distantes 17,5 km.

Dados do teste

Coordenadas:
Ponto 1: 18°29’9.05″S 45°23’36.38″O
Ponto 2: 18°30’36.24″S 45°26’48.36″O
Ponto 3: 18°24’44.47″S 45°19’0.09″O

Distância entre os pontos 1 e 3: 17.49 Km

Equipamentos utilizados

Houve a utilização de receptores de GPS* geodésico e de GPS de navegação, o que isso significa?

Basicamente existem 3 tipos de receptores GNSS:

• Navegação

• Topográficos

• Geodésicos

Cada tipo de receptor trabalha com faixas de precisão de acordo com as frequências de comunicação com as constelações GNSS (Global Navigation Satellite System). Não será abordado os equipamentos do tipo “Topográficos” pois o mesmo não foi utilizado no teste, mas trata-se de uma categoria de aparelhos pós-processados que proferem precisões em torno de 1m à 30cm, trabalhando na frequência L1.

*Quando utilizamos o termo GPS, estamos nos referindo ao sistema desenvolvido pelo Marinha norte-americana, o correto é aplicação do termo GNSS – Global Navigation Satellite Systems, que engloba todos os outros sistemas, GLONASS, BEIDOU e GALILEU.

GPS NAVEGAÇÃO

São equipamentos que trabalham com um precisão baixa, em torno de 10m à 5m nas coordenadas, dependendo de fatores como condições atmosféricas, região com muitos obstáculos, tempo de rastreio e quantidade de satélites rastreados. Utilizam Código C/A e são comumente utilizados em sistemas veiculares e celulares, em aplicações mais técnicas são utilizados para SIG, como cadastro de redes de esgoto, redes elétricas, mapas temáticos etc.

No link abaixo um trabalho realizado pelos alunos da Universidade Federal da Paraíba com o intuito de comparar os dados obtidos entre um GPS navegação e um topográfico.
https://geografiaaplicada.blogspot.com/2007/12/blog-post.html

GPS GEODÉSICO

São equipamentos que trabalham com dupla frequência de recepção, L1 e L2 (1575.42 MHz e 1227.60 MHz respectivamente) proporcionando alta precisão (cm e mm). Esta acurácia é obtida após o pós-processamento dos dados coletados em softwares que irão calcular as coordenadas (Norte, Este e Altitude), utilizando bases de referência que são constantemente corrigidas com a constelação de satélites. No Brasil, essa rede é a RBMC (Rede Brasileira de Monitoramento Contínuo) que apresenta diversos marcos geodésico espalhados pelo território, informando as efemérides necessárias para a correção das coordenadas.

Os aparelhos geodésicos são utilizados em serviços que demandam alta precisão, como monitoramento de estruturas, cadastros rurais e urbanos, apoio em levantamentos topográficos, implantação de obras de grande extensão como estradas, ferrovias, pontes, adutores, canais, túneis etc. A norma regulamentadora para serviços geodésicos é a NBR 14.166.

Atualmente existe a integração direta de dispositivo GNSS acoplado a uma Estação Total, incorporando automaticamente a base geodésica no levantamento topográfico.

Garmin eTrex

Dentre os receptores GPS utilizados no teste, havia um Garmin e-Trex 20x, um equipamento para uso em atividades esportivas e lazer, como dito anteriormente, apresenta uma precisão entre 10m e 5m, dependendo do PDOP (Position Dilution Of Precision), que no caso do e-Trex, fica em torno de 5 e 10, podendo chegar a 2. Em resumo, não é um equipamento adequado para cálculos geodésicos, devido a sua baixa precisão.


Topcom Hiper

Topcom Hiper sem versão descrita, como os modelos GGD e Plus compartilham a mesma caixa, não é possível identificar o equipamento.

O Topcom Hiper foi o equipamento Geodésico descrito no teste e no site, mas não descreveram qual o modelo do Hiper L1/L2, se a versão Hiper GGD que trabalho com Glonass e GPS, ou a versão Hiper plus que pode ser convertido em RTK, cada qual com suas particularidades, como possibilidade de rastreio do Sistema Glonass ou utilização RTK, mas que, de qualquer forma, seria necessário o pós-processamento dos dados, ou seja, deveria ser descarregado o arquivo bruto e calculadas as correções de coordenadas, ajuste das efemérides, com base em marcos da RBMC, tudo isto feito no computador em software específico.


Software TrackMaker

O Software utilizado no experimento, o TrackMaker, é um software gratuito que tem a finalidade de processar pontos de GPS do tipo Navegação. Não é um software aplicado para pós-processamento de dados brutos de GPS Geodésico.


Localização dos pontos

Posicionamento dos pontos conforme descrito no site e no vídeo:
Ponto 1 – Lat.: 18º29’9,05”S Long.: 45º23’36,38”W
Ponto 2 – Lat.: 18º30’36,24”S Long.: 45º26’48,36”W
Ponto 3 – Lat.: 18º24’44,47”S Long.: 45º19’0,09”W

Distância entre os pontos 1 e 3: 17.49 Km


Análise dos resultados apresentados

Conhecendo o ferramental utilizado podemos verificar uma série de inconsistências que corroboram com uma aplicação enviesada de forma a encobrir o resultado real do experimento, em resumo, os participantes se utilizam da falta de conhecimento do público sobre geo-tecnologias. Ao final do experimento é apresentado o resultado e uma suposta variação de altitude, que não tem o menor sentido, visto que as bases GPS estão instaladas na margem do lago, portanto estão sob o mesmo equipotencial gravimétrico.

Referencial para cálculo de altitudes

Para o cálculo da altitude, o que devemos utilizar como referência é altitude elipsoidal, ou seja é “Normal”, a reta perpendicular entre a Superfície Física e o Elipsoide de Referência.

Porque utilizar a Normal no cálculo?
Ao instalarmos o equipamento, o prumo do aparelho á dado através da “Vertical”, ou seja, a Reta que liga perpendicularmente a superfície física ao geóide, mas isto não é correto, pois o geóide sofre variações, ele é dinâmico, a sua variação é constante devido aos movimentos das massas na crosta terrestre, um exemplo claro são as marés, onde é evidente a alteração da ondulação geoidal devido ao acúmulo da massa líquida, alterando a direção do fio de prumo, numa escala ínfima, mas que é suficiente para prover altimetrias equivocadas, além de seu cálculo se tornar muito oneroso. Em contrapartida o modelo elipsoidal é a forma matemática da superfície terreste, um elipsoide de revolução (Oblato esferóide), assim conseguimos trabalhar em superfícies que não alteram com o tempo, o que torna mais simples o cálculo das coordenadas. Para tanto, é realizada a correção angular (direção Zenital) entre a Normal e Vertical nos softwares de pós-processamento.

H –Altitude Ortométrica
h –Altitude Elipsoidal ou Geométrica
N –Ondulação Geoidal

Exemplo de cálculo de altitude ortométrica (geóide-relevo) com o uso do MAPGEO2015, realizado pela Engª Natália Barboza do CEGAT: http://cegat.com.br/source/Atitude_Ortometrica_CEGAT.pdf


Dados geográficos para análise

Base de dados da quadrícula SE-23-Y-B em Minas Gerais, que compreende a região da barragem de Três Marias

Para verificação da altitude, utilizou-se o Software Global Mapper, para processamento de imagens GEOTiff, disponíveis no INPE, Embrapa e IBGE. Adotamos os dados disponibilizados pela Embrapa na página “Brasil em Relevo”: https://www.cnpm.embrapa.br/projetos/relevobr/download/

Na figura abaixo é possível observar a região do lago da barragem, com uma altitude variando entre 550m e 650m, sendo que nos ponto onde o teste foi realizado a altitude é de 570m.

Contorno vermelho tracejado –limite da área de realização dos experimentos
Resultado do processamento das curvas de nível sobre a região para constatar a altimetria no entorno do lago. o arquivo foi exportado para o Google Earth no formato kmz.
O arquivo kmz exportado contém as informações das curvas de nível a cada 1m de altura

Altitudes geográficas

Os pontos encontram-se na mesma cota altimétrica de 571m, obviamente por participarem da mesma altitude elipsoidal.

Ondulação geoidal

O IBGE disponibiliza em sua plataforma o aplicativo MAPGEO2015, que está atualizado com o DATUM SIRGAS2000, que é o modelo de referencial elipsoidal utilizado no Brasil atualmente (substituindo o SAD69). No aplicativo é possível determinar a ondulação geoidal, ou seja, a diferença de altura entre a superfície do elipsoide e a superfície do geóide, necessária para o cálculo da altitude geométrica ou altitude elipsoidal.
https://www.ibge.gov.br/geociencias/modelos-digitais-de-superficie/modelos-digitais-de-superficie/10855-modelo-de-ondulacao-geoidal.html?=&t=o-que-e
Ao inserirmos as coordenadas geográficas dos pontos, verificamos que a diferença entre os pontos não passa de 26cm, que é uma diferença pequena e que não causa impacto algum ao resultado (diferença de altitude de alguns mm), portanto a altitude elipsoidal entre os três pontos pode ser considerada a mesma.

Esta ilustração demonstra o que de fato ocorre, como a ondulação geoidal apresenta uma pequena diferença, a altitude geométrica pode ser considerada a mesma para os pontos neste caso.

Conclusão

A suposta diferença de altimetria de 6m não tem o menor sentido, a altitude dos pontos é a mesma uma vez que todos os pontos estão sobre a mesma altitude elipsoidal, com a ondulação geoidal apresentando uma diferença mínima que não influência na elevação. A realização deste teste poderia ter sido efetuada com os dados disponibilizados no EMBRAPA, IBGE e INPE, não é necessário se deslocar fisicamente até o local, efetuar um levantamento superficial e sem rigor técnico para comprovar que a altitude elipsoidal do lago é a mesma.

Caso o teste fosse realmente efetuado de maneria técnica e com metologia, deveriam ao menos cumprir o mínimo de rigor, sendo que:

  1. Não são apresentados os arquivos brutos (Rinex) para que se possamos verificar as informações obtidas pelo GPS Hiper;
  2. Não são informadas as alturas do equipamentos (hi) instalados na margem do lago, necessária no cálculo da altitude;
  3. O Software TrackMaker não processa os dados do GPS Geodésico, somente o GPS Navegação, ou seja, não existe a precisão que alegam apresentar, deveria ser utilizado o software Topcon Tools com os arquivos do Hiper e informada qual base RBMC foi adotada no pós-processamento.
  4. Não é informado o PDOP para o GPS eTrex, o que pode ocasionar em uma diferença altimétrica considerável, contudo segundo a CEMIG, o nível da barragem fica em torno da cota 567 e 551 entre 2017 e 2020.
  5. O “experimento” foi realizado em 2014 e os dados disponibilizados pela Embrapa são de 2004, neste caso o que importa é que os valores apresentados sejam iguais nas margens do lago, o que é constatado.
  6. A altimetria de 556m é provavelmente o valor obtido pelo GPS eTrex, e sabendo que sua precisão gira em torno de 10m, somando essa diferença ao valor informado, chegamos próximo a altitude 571m obtida na análise dos arquivos GEOTiff disponibilizados pela Embrapa.

A equipe utilizou os equipamentos de maneira amadora, não basta deixar o ambiente tecnicamente apresentável num contexto de agrimensura e não mostrar os dados reais (se é que foram realmente coletados), e nem conhecimento técnico para manejar o equipamento, como exemplo dessa falta de conhecimento do equipamento, vemos imagem abaixo um nível óptico sem utilizado para efetuar a leitura da altura num prisma.

O sistema GPS (GNSS) como foi concebido, só é possível justamente pelo fato do planeta Terra ser um globo, o qual permite que os satélites orbitem de acordo com as leis do movimento descritas por Newton, portanto, utilizar o sistema de posicionamento global para contestar o formato da Terra é uma grande tolice.

Agradecimentos ao Eng, Carlos Lima pela elaboração do material e suporte técnico.