O “Artigo”, a Revista e a pilantragem escancarada

Talvez essa postagem tenha levado muito tempo para ser feita e talvez ela nunca devesse ter sido feita, para não gerar mais curiosidade sobre a enganação que será exposta aqui, mas alguns acontecimentos recentes (e outros não tão recentes) me levaram a gastar meu já caro e escasso tempo para criticar um certo texto. Concluí que expor a enganação vale o custo.

Em algum determinado momento de 2021, uma obscura negacionista apoiadora e propagadora de pseudociências escreveu um texto caótico, inconsistente, repleto de erros gramaticais e conceituais, mostrando toda sua ignorância em assuntos que tentava abordar nesse texto e conseguiu que ele fosse publicado em uma “revista científica” que, por um módico valor de alguns milhares de reais, oferecia DOI e “revisão por pares” aos trabalhos apresentados.

A tal “revista científica” nada tem de científico publicado nela. As postagens (chamadas ali de “artigos”) são nada mais do que isso: postagens que qualquer blog poderia armazenar. E a revista ainda apregoa aos quatro cantos que possui Qualis B1. Sim, o SphaericaEst é um blog. A diferença é que não propaga conteúdo pseudocientífico.

Pois bem. Quando o texto (vou evitar chamá-lo de “artigo”) chegou ao nosso conhecimento, uma leitura rápida já nos mostrou que era só lixo incoerente criado por uma pessoa que não tem nenhuma capacidade cognitiva para entender o funcionamento da natureza mas apresenta os comportamentos narcisistas do conspiracionista médio (no sentido de average, medíocre), achando-se “a última bolacha do pacote”, sofrendo de delírios messiânicos e crendo que está em uma missão divina para salvar a humanidade da ciência malvadona que só quer dominar e reduzir a população e afastar o ser humano de alguma entidade imaginária que tudo vê e conhece.

Fizemos algumas ressalvas, alguns papos, mostramos algumas incoerências, o texto foi removido da “revista” por conta de alguns apontamentos meus e do prof. Fernando Lang da Silveira, da UFRGS e ainda recebi uma mensagem dizendo que ele havia sido publicado devido a um “erro do estagiário”. Entretanto, pouco tempo depois, o texto volta a ser publicado, com uma nota da redatora dizendo que ele levanta questionamentos importantes e que deveríamos submeter trabalhos à revista com nossas contestações. Em lives feitas pela redatora ela afirmou que a revista resolveu “dar o benefício da dúvida” à autora. Nessas mesmas lives, quando perguntamos como os supostos revisores aceitaram um texto que diz que 257 – 331 é igual a 331 + 257, fomos banidos do chat.

Ok, compreendemos o caráter tanto da redatora quanto da revista, uma publicação caça-níqueis como milhares que temos mundo afora. Mas as coisas iriam piorar.

Nosso amigo Felipe Menegotto, em seu canal do Youtube fez uma crítica ácida ao texto, à revista e aos supostos revisores. Ganhou um aviso de que a revista processou o Youtube (e a empresa detentora de seus direitos, Google) para que removessem, pasmem, não o vídeo, mas todo o canal do divulgador científico. A história pode ser lida no Substack do Menegotto. A argumentação dos advogados do Youtube e a decisão do Juiz são magistrais.

Mas é nesse ponto que percebemos que tem algo muito errado. Como argumentam os advogados do Youtube, “O caso dos autos traz ao conhecimento do Poder Judiciário a veiculação de críticas incisivas em uma plataforma aberta voltada à disseminação de informações e opiniões. Pode-se concordar, ou não, com a crítica, mas a opção pela CENSURA adotada pela empresa autora é certamente criticável e contrária aos mandamentos constitucionais em vigor no Brasil“. O grifo é meu.

Some-se a isso o fato de que a autora do texto vale-se de um argumento de autoridade enquanto propaga suas asneiras, mentiras, comportamento infantilóide e analfabetismo funcional em virtualmente todas as áreas nas quais alega ser “especialista”, dizendo que “eu tenho artigo publicado… você tem?”. E a claque imbecilizada aplaude e concorda quando a autora diz que 257 – 331 é igual a 331 + 257. Mas entendo que é complicado esperar que pobres coitados que não tiveram oportunidade de estudo e preferiram seguir o caminho da desonestidade intelectual apenas para fugir da vida miserável que têm e sentir-se pertencer a um grupo, que detém um conhecimento oculto que ninguém mais tem, entendam a complexidade de uma soma ou subtração e no que elas diferem.

A autora tem uma audiência arrebatadora? Não. Tampouco participa de qualquer grupo politicamente influente em uma região qualquer do país, onde supostos alienígenas demonstram seus incríveis poderes de se agachar atrás da moita e saltar para frente, mas que afirma que nosso planeta parece um abacate cortado ao meio e lançou um esquema de criptomoedas e um “dinheiro comunitário” entre um papo e outro com os tais alienígenas. A autora é um zero à esquerda.

O problema é que, com essa ainda que falsa autoridade de se “ter um artigo publicado e revisado por pares”, mesmo sendo ele bobinho e infantil, abre-se um precedente perigoso de haver um local onde permite-se e supostamente valida-se por “revisão por pares” a divulgação de mentiras deslavadas, as falas agressivas contra os professores e as instituições de ensino, contra vacinas (movimento este co-responsável pela morte de milhões de brasileiros na pandemia de Covid-19), o revisionismo histórico que tenta justificar o genocídio de um povo porque teria supostamente sido responsável pelo assassinato de um “salvador da humanidade”, as curas quânticas, os jovens místicos, as dietas cetogênicas que dizem curar câncer mas matam repórteres, os “médiuns” que abusam sexualmente de suas “pacientes”, a água sanitária ingerida ou aplicada por via anal em bebês e crianças portadoras de síndrome de Down ou em algum nível do espectro autista, entre outras enganações perniciosas e apologias ao crime. E corremos então o risco de ter a melhor ferramenta científica já criada, o Método Científico, assassinado.

Portanto, resolvi aplicar um certo tempo do meu dia para criticar parágrafo por parágrafo, argumento por argumento, mentira por mentira o texto em questão e, principalmente, o trabalho dos supostos revisores. Não levou tanto tempo assim. No geral, umas 6 horas de trabalho me deram o primeiro esboço, que foi avaliado pelos amigos do SphaericaEst, que recebeu sugestões importantes e correções importantíssimas das pessoas já acostumadas com as bobagens da autora. Valeu a pena

Por ser um trabalho extenso (80 páginas em sua versão atual), não cabe virar uma postagem aqui do SphaericaEst, mas seu PDF está disponível aqui, para apreciação e críticas de qualquer pessoa.

Essa crítica foi enviada ao MEC e ao Instituto Questão de Ciência.

Essa postagem também foi publicada no meu Substack.